quinta-feira, 11 de outubro de 2007

3. Do banjo ao violão

Parece evidente que, em parte, a razão pela qual o banjo tenha perdido o seu papel central na música rural afro-americana deva-se ao fato de que muitas composições do seu repertório tenham sido assumidas por músicos brancos, tendo-se associado com os espetáculos de minstrel brancos e seu racismo generalizado. As mudanças no instrumento também - o tom mais alto e a tensão das cordas, que não podiam segurar uma nota- faziam com que o banjo não fosse tão útil como instrumento de acompanhamento. No entanto, desempenhava ainda esta função entre os cantores brancos, já que utilizavam timbres vocais mais altos, amiúde o falsete, e cantavam com uma nasalidade forte que proporcionava nitidez às letras das canções. O modo de cantar afro-americano, contrastivamente, utilizava timbres vocais mais baixos e enfatizava os tempos mais lentos, fazendo com que fosse difícil cantar ante o breve e animado "plink" do banjo.
A solução para os problemas do banjo foi o violão, que tem um som de baixo mais profundo e que, principalmente quando está afinado por baixo do tom padrão do concerto, produz notas que se mantém num período de tempo suficiente como para encher as pausas de uma frase vocal cantada lentamente. O violão também possui todas as demais características necessárias para que um instrumento popular consiga uma ampla difusão: é barato, fácil de transportar, relativamente duradouro e pode ser tocado junto com uma grande variedade de outros instrumentos. O violão foi que se transformou no instrumento do blues, ainda que muitos dos primeiros estilos do blues se construíram sobre os padrões rítmicos e harmónicos que tinham-se desenvolvido e mantido com o banjo. Nas primeiras gravações de blues podem-se escutar muitos estilos de acompanhamento claramente derivados das técnicas do banjo.

2. Os primeiros instrumentos - a origem do banjo

Nos muitos anos que transcorreram desde que canções dos Griots percorressem o longo trajeto até os Estados Unidos, os instrumentos que tocavam e as próprias canções sofreram numerosas mudanças. Ainda é possível descobrir a origem de alguns instrumentos, mas outros elementos que conformam o blues moderno se perderam em algum lugar do tempo durante os duros anos da experiência afro-americana.
Os primeiros viajantes da costa oeste da África onde capturaram quase todos os escravos que depois foram levados aos Estados Unidos- já descreviam os griots e suas canções, ainda que em algumas ocasiões utilizassem a palavra local que designava "cantor".
Em 1745, uma recompilação de escritos sobre viagens publicada em Londres, Collection of Voyages, de Green, incluía descrições de cantores, de um viajante inglês chamado Jobson:
Sobre o papel que desempenham os músicos na sociedade parece existir um grande acordo, embora existam diferenças na hora de dar-lhes um nome. Aqueles que tocam instrumentos são pessoas com um caráter muito singular e parecem ser tanto poetas quanto músicos, algo semelhante aos bardos ingleses e os antigos bretães. Todos os autores franceses que descrevem os países dosjaloje osfuli os chamam de guiriots, mas Jobson os chama de judies, que ele interpreta como violinistas. Talvez o primeiro que tenha aparecido foi o nome de jalof e juli e, depois, o mandindo.
O viajante Bardot diz que guiriot, na linguagem dos negros que vivem perto de Sanaga, significa fojão, e que são como uma espécie de aduladores. Os reis e os homens importantes do país têm cada um deles dois ou mais guiriots para que, de vez em quando, os divirtam e entretenham os estrangeiros.
As três tribos mencionadas na passagem anterior são conhecidas hoje em dia como wolof, fula e mandingo. Posto que, até faz pouco tempo, estas tribos não possuíam uma língua escrita, a ortografia dos nomes varia. Somente no Senegal, podem-se encontrar mais de trinta ortografias distintas do nome wolof. A palavra juddies, que Jobson interpretou como "violinistas", é provavelmente a palavra mandingo jali, o termo que designa cantor. Embora tenha interpretado a palavra como "violinistas", é possível que se estivesse referindo aos griots fula, conhecidos como jelefo. Os cantores fula acompanhavam-se a si próprios com um pequeno violino de corda chamado riti.
O instrumento que o cantor estava tocando para o grupo informal de ouvintes no casebre da Gâmbia era feito de uma abóbora alongada que tinha secado até chegar à dureza de um plástico. Tinha cinco cordas cortadas de um fio de nylon longo atadas à um pedaço de pau que fazia às vezes de braço do instrumento. Quatro das cordas se estendiam até o final do pau, e a quinta estava atada perto do corpo do instrumento, com uma longitude mais curta que elevava o seu tom. Havia uma ponte talhada à mão que mantinha as cordas separadas da membrana de pele de cabra estirada que cobria o corte feito na abóbora. Na língua do cantor, que era wolof, o instrumento se chamava halam; na língua dos músicos africanos que o levaram ao sul dos Estados Unidos tinha um nome diferente, banjo.
Como tudo o que chegou ao sul, vindo da África, o banjo sofreu mudanças durante os anos que passaram entre a sua chegada e o momento, talvez um século e meio depois, em que os primeiros banjos soaram no cilindro de um gramofone.

Há uma pintura do século XVIII que representa um baile dos escravos na Virgínia e mostra um instrumento que ainda era muito similar ao banjo africano, mas lá pelos anos trinta e sessenta do século XIX, quando era cada vez maior o número de músicos que começaram a pintar os rostos de negro e a interpretar as canções e bailes dos músicos afro-americanos nos palcos toscos das pequenas cidades da nação, o instrumento começou a mudar.
Um dos músicos de banjo mais populares nos anos anteriores à guerra civil, "Picayune" Butler, ainda utilizava um instrumento feito com uma abóbora na década de quarenta, do século XIX, mas quando apareceu a primeira banda de músicos com a cara pintada de preto no palco onde ia acontecer o primeiro espetáculo de minstrel* em 1853, o banjo já tinha-se americanizado. A membrana de pele estava agora estirada numa armação redonda, primeiro, de madeira e, depois, de metal. O cabo arredondado tinha sido substituído agora por um braço plano, e a corda curta ficou presa ao lado do braço com uma clavija. As cordas longas também ficaram unidas ao braço com clavijas, primeiro, de madeira, como num violino e, depois, de metal com rosca. A membrana era agora como um dos extremos de um tambor e, quando mudou, as clavijas e o aro que a mantinha estirada também eram de metal com rosca.
O instrumento era o mesmo pequeno halam de cinco cordas -ou konting, como se denomina uma versão maior do mesmo instrumento-, mas em vez do som suave do ponteio, agora era mais barulhento, e posto que as cordas podiam-se tensionar-se mais, tocava num tom mais alto. Tinha-se transformado no banjo, com um som que normalmente se descrevia como "metálico". O banjo, junto com o onipresente violino, se transformaram nos instrumentos mais comuns das plantações do sul. O banjo não foi, de forma definitiva, o instrumento que conformaria o blues, mas foi o instrumento que contribuiu para desenvolver as técnicas que chegaram a fazer parte dos antecedentes do blues.
Fica difícil reconstruir a sua evolução, já que, no momento em que a música local do sul já estava-se gravando por todas as partes, também tinha sido assumida por muitos cantores brancos, como Buell Kazee, Dock Booges (chamado também de Doe Boggs) e Clarence Ashley. Quase todos eles confessavam a influência da música dos seus vizinhos afro-americanos, que lhes tinham ensinado como tocar. E aprenderam não somente todas as técnicas para tocar, que vinham diretamente do estilo de digitação dos griots, mas também alguns dos padrões de canções e ritmos. Muitas canções antigas de banjo, interpretadas como "velhas melodias folk" por tocadores de banjo brancos, ainda conservam a configuração das melodias originais africanas, e alguns dos versos "sem sentido" das canções contem palavras e frases africanas. De fato, pode-se seguir a evolução do banjo, sem solução de continuidade, desde a Bacia Bambara da África do Sul, uma das zonas onde se capturaram muitos escravos, até o estilo bluegrass* de músicos como Earl Scrugg. O que frequentemente era considerado uma expressão cultural dos brancos distintiva do sul é, na realidade, um dos mais enérgicos vestígios da influência da cultura africana na música americana.


Na década de vinte, no entanto, quando as companhias discográficas começaram a imortalizar o blues pela primeira vez, só uns alguns poucos cantores já utilizavam o banjo. Um deles, Papa Charlie Jackson, que começou a gravar com a Paramount Records em 1924, era muito popular, mas tocava o instrumento seguindo o estilo de uma banda, já que, naquele momento, o banjo normalmente era considerado um instrumento rítmico das orquestras de jazz e de baile. Só um dos músicos de banjo do país, Gus Cannon, que dirigia uma jug band para a Victor Records no final dos anos vinte, realizou muitas gravações. Numa delas, "Jonestown Blues", pode-se apreciar como havia evoluído o estilo do banjo para acomodar-se às qualidades específicas do blues. Em seu acompanhamento, Cannon utiliza os acordes exatos do primeiro blues para seguir a frase vocal, e depois conclui cada frase com um floreio de banjo. O floreio podia ser um fragmento da antiga aula de adorno, que é mais característica da música do halam, embora tivesse que adequar-se a um ritmo regular, um dos elementos distintivos do blues.
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* Minstrel: espetáculo de variedades, com artistas, na maioria, brancos, que incluía canções e números cómicos, geralmente imitando de forma burlesca os negros.
* Bluegrass: música folk do Kentucky.

1. Buscando as origens

O cantor estava sentado sobre o linóleo descolorido que cobria o chão desigual e empoeirado de uma pequeno casebre, perto da foz do rio Gâmbia, na África. Sob as suas roupas escuras estendia-se um tapete tecido à mão que as mantinha separadas da poeira. Um grupo de pessoas que havia ouvido a música passando por lá amontoava-se no pequeno espaço. Como não havia porta, só tinham que segurar a cortina florida pendurada na entrada. Ele estava meio cantando, meio recitando versos longos, livres e poéticos que contavam a história de um rei local antes da chegada dos europeus, um rei que estava lutando contra outra tribo que tinha invadido o seu território. Enquanto cantava, as pessoas que se apinhavam lá dentro, a maioria delas usando camisas de manga curta e calças de algodão muito desgastadas, murmurava e assentia com a cabeça.
Nas mãos, ele tinha um pequeno instrumento de cordas caseiro que tocava repetindo uma série de figuras rítmicas, com um tom suave e apagado das cordas,proporcionando um acompanhamento leve e apressado à profunda ressonância da sua voz. Um som pausado de pés descalços batendo no linóleo acompanhava o movimento dos seus dedos. Cada língua da África do Sul possui um palavra diferente para designar o "cantor", mas todas elas utilizam um termo mais geral, griot. O cantor do casebre era um griot da tribo wolof, e é possível que alguém como ele começasse pela primeira vez a configurar a música que hoje em dia conhecemos como blues.

* Holler no original. Verbo que significa "gritar" e que se usa também para denominar uma maneira de cantar.